Desconstruindo Una - Una

Começar o ano com uma leitura tão relevante e que, tendo se passado há quase quarenta anos atrás, ainda é tão atual não é fácil, é na verdade extremamente doloroso, mas também por isso ainda mais importante. “Desconstruindo Una” é mais uma HQ excepcional que fez meu fascínio pelo trabalho da Editora Nemo aumentar a cada página.


Com quadrinhos não “tradicionais” e de maneira não linear, conhecemos a história da jovem inglesa Una que teve sua infância e adolescência usurpadas devido à violência de gênero, na mesma época em que a região em que vivia era assolada pelo terror de um famoso serial killer que matava apenas mulheres.


Sim, essa é uma leitura pesadíssima e que pode conter gatilhos. Me considero uma mulher de sorte por crescer sem jamais ser exposta a e/ou sofrer violência de gênero como as relatadas nessa obra, algo que é muito mais comum do que podemos nos dar conta daqui de nossas vidas privilegiadas. Ainda assim, me peguei por várias vezes respirando fundo no metrô para não chorar em público, nem sempre com sucesso.


Ninguém quer, todos viram o rosto, mas é preciso falar sobre questões de gênero, cultura de estupro e culpabilização da vítima. É necessário discutir CONSENTIMENTO, pois é inaceitável e, como mulher, absolutamente assustador que esse assunto ainda não seja claro para um número aterrador de homens e, mais ainda, que sequer haja a necessidade de debater algo tão aparentemente evidente quanto quem é/está apto a consentir. NÃO É NÃO e pessoas vulneráveis SÃO SEMPRE NÃO. Como feminista, esses são conceitos que me parecem sempre tão óbvios, mas são obras como essa que nos trazem de volta a realidade e lembram que infelizmente não era óbvio há quarenta anos atrás e não é ainda nos dias de hoje, uma compreensão que é sufocante.

É opressor o quão atual essa obra é. Lendo, me lembrei claramente de um caso famoso nos noticiários de uma mulher que foi assassinada junto de suas irmãs e primas pelo ex-marido que logo em seguida matou o filho e então se matou, me lembrei do quanto eu chorei enquanto lia os inúmeros comentários que diziam que ele perdeu a razão quando matou o filho, como se as vidas daquelas mulheres não valessem nada. Lembrei-me dos infinitos casos cotidianos de feminicídio que lemos no jornal, em que as pessoas tentam descobrir “o que a vítima fez para merecer aquilo”. Lembrei também da luta diária nas redes sociais e do mar de “pessoas de bem” tentando desacreditar o conceito de feminicídio. Lembrei-me de João “De Deus” e sua inescrupulosa defesa baseada em questionar a moral de suas vítimas, bem como sua maré de defensores que questionam os "interesses" dessas mulheres corajosas que o denunciaram, prova clara de que a voz de um único homem vale mais do que a de quinhentas mulheres. Eu, que graças a Deus nunca passei por ou presenciei nada remotamente semelhante, chorei por minhas irmãs, por todas aquelas que corajosamente falaram, por todas aquelas que não foram ouvidas e por todas aquelas que ainda sofrem em silêncio.


“Desconstruindo Una” é uma leitura incômoda, pesada e brilhante que alcança com uma honestidade destruidora a alma de quem lê. Essa genial e muito necessária discussão sobre a violência contra a mulher é uma obra magnífica e corajosa com uma história delicadamente construída, mas com uma mensagem absolutamente devastadora.


Nota: 5/5★
A HQ no Skoob: Desconstruindo Una

Culpar a vítima é um ato de refúgio e uma forma de nos enganar. Permite àqueles que o fazem, sentar e julgar, imaginando alguma justiça mística que significa que coisas ruins só acontecem com pessoas ruins, garantindo, dessa forma, sua própria segurança.


Nenhum comentário

Tecnologia do Blogger.